É com grande prazer que iniciamos nossos trabalhos em 2010, com a volta dos ensaios para o carnaval e postagens frequentes aqui.
Já dá até pra ouvir o som ainda distante do nosso Maracatu se aproximando...
E vamos começar postando uma entrevista com o nosso homenageado neste carnaval: Mestre Verdelinho.
Essa entrevista foi feita pelo jornalista Bob Omena em novembro de 2006, e foi postada no extinto site observatório alagoano.
NAS ASAS DO VERDELINHO
Mestre fala de sua carreira e das dificuldades
do artista em sobreviver da cultura popular
Observatório Alagoano - Com quantos anos o senhor começou a tocar pandeiro?
Mestre Verdelinho - Eu comecei a tocar com 3 anos de idade. Eu via meu pai cantando, e me dava a maior vontade de cantar. Mas meu primeiro pandeiro eu fiz em casa mesmo. Eu brincando detrás de casa, eu fazia com latas velhas, de doce ou daquelas latas maiores que eu nem sabia do que era.
OA - O senhor já cantava ou apenas tocava?
MV - Onde eu morava tinha um guerreiro, um mateus velho, que eu tinha até medo dele. Ele bem moreno, todo melado de carvão fazendo muito deslocamento, fazendo aquelas lamúrias. Eu como criança ficava com medo. Aí eu ficava cantando
[cantando]
Ai, Maria, eu sou teu amor
A aí, Maria, eu sou teu amor
Maria foi embora
Lembrança me deixou
Maria foi embora
Lembrança me deixou.
Na terra sobe o calor
Estira, estica e encolhe
O gato só se conhece
Por ter as unhas veloz
OA - Quem lhe ensinou essa música?
MV - Eu ouvia ele cantar e decorei. Eu segurei essa musiquinha lá pela vizinhança, e a vizinhança achou muito interessante, como se eu fosse uma curiosidade, uma coisa... eu não sei explicar bem ... uma coisa simples, mas uma simplicidade que tivesse futuro para mim...
OA - Aos oito anos de idade o senhor fugiu de casa, por quê?
MV- Carinho eu não tinha de ninguém. Era eu quem dava carinho aos que tinha dentro de casa. Eu era o mais velho, e eles [os cantadores] eram quem me davam o carinho, que eram grandes Fugir de casa porque, quando eles saíram, ficou aquilo tão vazio, aquela falta enorme pelos nomes deles: um se chamava Benedito, e o outro, Curió.
OA - E quem eram Benedito e Curió?
MV - Dois cantadores que passaram uns tempos na casa de meu pai. Às vezes, eu tocava primeiro do que eles. O Curió sempre mais gostava de cantar comigo do que com o Benedito. Porque, realmente, para o Curió era melhor, porque, ele cantando comigo, ele já ia ganhando aplauso do povo. Eu novinho, ele camarada velho, e o pessoal ficava admirando o meu tamanho.
Foto: Kelly Baêta
OA - E quanto tempo o senhor passou com esses cantadores depois que fugiu de casa?
MV - Nove meses. Andando em São Miguel [dos Campos], pelos arrebaldes... fazendo uns serviçozinhos que precisavam por ali. Quando foi um tempo, eles se engajaram de ir para a Bahia de São Salvador, e eu fui com eles.
OA - Mas vocês também tocavam onde chegavam?
MV - De noite. De noite, nós “tocava”. Em cada cidade, em cada povoado. A gente dormia nas casas que cantava ou no meio do mato, no chão... nem rede a gente tinha... Um dia, no meio do caminho, já de tardizinha, eu disse: “olha rapaz, nós tá nesse deserto, nós vamos dormir aonde?” Aí o Curió disse: “Na casa de Nosso Senhor Jesus Cristo! Vamos embora”. Andemos, andemos, andemos... E quando foi umas horas, nós paremos. Paremos, olhemos assim tudo escuro. O lugar era plano, com uns matinhos. Eu passei a mão assim, um munturo, aí eu disse: “dá até pra botar a cabeça aqui. Eu vou ficar por aqui”. Aí ficamos ali. Fizemos um fogo no meio, ajeitemos pra fazer café com pedaço de pau que tinha por ali. Depois de comer, nós fomos dormir. Dormimos tão bem! Quando foi de manhã que nós olhemos... Menino! Quando fiscalizei a vista abaixo, a gente tinha dormindo num cemitério, no meio de cruz, de ossos...
OA - Vocês chegaram a Salvador?
MV - Não chegamos não. Caminhemos 28 dias, de ida e volta.
OA - Qual a origem do nome Verdelinho?
MV - Porque, naquele época, todo cantador tinha nome de passarinho. Aí me deram o nome de Verdilinho. Além de ser um passarinho pequeno, era quase desconhecido.
OA - Não tinha saudades de sua família?
MV - Tinha. Mas tinha medo de voltar pra casa, com medo de levar uma sola do meu pai. Naquela época, meu pai me dava cada pisa de tirar a sola.
OA - Mas o senhor acabou voltando pra casa. Não levou a sova?
MV - Não levei porque eu cheguei no caminho e ajeitei um negocio pra minha irmã, um tamanco pra outro, uma calça pra meu pai, uma camisa... Aí eu cheguei, com cabelão, a camisa batia bem aqui, uma trouxa aqui amarrada. Cheguei bati palma [bate palmas]: “oh, de casa!”, “oh de fora”. Eu disse: “dona, me dê um pouquinho d’água”. Aí, minha mãe me trouxe um caneco d’água. A gente começou a conversar... ela nem me reconheceu... aí eu falei pra ela quem eu era, ela olhou pra mim e confirmou o filho que tinha saído de casa.
OA - Quantos anos o senhor tinha?
MV - Doze anos.
OA - O senhor estudou, foi à escola?
MV - Ah! Estudei nada! Quando eu tava dentro de casa, não tinha condições. Meu pai não me puxava pra eu estudar. Só queria que me lascasse no cabo da enxada.
OA - Com quantos anos o senhor começou a trabalhar na roça?
MV- Com sete anos. Com meu pai, não tinha nada de escola. Era puxar para os pés, e a cangalha virar.
OA - Como foi que o senhor entrou para o guerreiro?
MV - Eu era mateus do Guerreiro do Mestre Jorge, aqui mesmo em Bebedouro. Aí o Mestre Pedro Teixeira disse que só queria um mateus bom de “tampa e rampa”. Aí eu fui ser mateu do Guerreiro de Mestre Pedro Teixeira. Naquela época, eu ganhava dez tostões pra dançar. Quem me abriu os caminhos foi Pedro Teixeira. Foi ele quem me deu a vida. Viajou comigo o Brasil quase inteiro.
OA - Naquela época, era mais fácil ganhar dinheiro?
MV - Era, porque não havia tanta tecnologia como tem hoje. Mas, naquela época, eu não sabia o que era tecnoligia não.
OA - E como o senhor deixou de ser mateus e passou a ser mestre?
MV - Um dia, o professor Pedro Teixeira alugou um ônibus para ir pra Brasília, para a festa dos três poderes. O ônibus chegou , mas cadê o Mestre Jorge chegar. Aí ele disse: “vamos transar o Verdilinho de mestre”. Aí eu disse: “eu não! Eu não sou mestre, sou mateus. Não vou transar de mestre sem saber!”. Eu fui bem dizer a pulso. Quando cheguei lá e cantei:
Boa noite, senhores cheguei
De longe avistei essa terra tão boa
Não é à toa que a volta é cruel
Meu guerreiro é campeão de Alagoas
Aí, mandei brasa em cima do palco, e o povo: “Alagoas, Alagoas...” Aí eu fiquei com aquele prazer.
Dacnis cayana=saí-azul=verdelinho
Foto: Dario Sanches
OA - O senhor se arrepende de ter vivido da cultura popular?
MV - Eu acho que ainda é um pequeno elemento para mim... porque eu não sei dizer se, eu não soubesse nada, com eu iria me arranjar de hoje por diante, não sei... outra profissão nunca tive.
OA - Quantas músicas o senhor já fez?
MV - Tenho pra mais de trezentas.
OA - O senhor não sabe ler nem escrever. Quem anota as músicas para o senhor?
MV - Ninguém. É tudo de cabeça.
OA - Qual foi o momento mais feliz na sua vida de mestre?
MV - O mais feliz? Muitos, muitos... mas tudo em regime que eu gosto: guerreiro, viola, pagode...
OA - O senhor está satisfeito com a Secretaria de Cultura?
MV - Opa! [fica agitado] Me fale não! Tira, tira, tira... tira isso... tira tudo! Por Nossa Senhora! Pra mim, foi a pior tristeza do mundo, foi essa Secretaria de Cultura... [pausa, toma um pouco de água]
OA - Por quê?
MV - Essa foi lasca! [pausa] Consciência para dar cobertura a mim... consciência, que é mais fino que a consideração.
OA - O senhor ficou doente e não recebeu assistência, foi isso?
MV - Nem assistência, nem p.... nenhuma
OA - E o seu CD, a Secretaria de Cultura patrocinou?
MV - Que patrocínio nem nada! Eu digo a vez que ela não tem um mínimo, um mínimo, de conhecimento. Ela não se interessa por mim... umas pessoas que entram no poder e não sentem o que é que a pessoa faz. Se sentissem, eles pegavam um pouco do que tinham e chegavam, liberavam... não para mim, mas para todos da cultura popular.
OA - E agora com o seu CD, o senhor acha que as coisas irão melhorar?
MV - Melhorar, não vai melhorar, porque isso não faz melhora pra o artista. O que faz melhora pra o artista é o prolongamento de botar aquilo até cair. Eu não posso mais...
OA - Qual o destino, então, da cultura popular?
MV - O que nós temos é bem pouco. O que nós temos estamos levando pra dentro da sepultura. Quem podia ficar com o que nós temos são os nossos filhos, mas nossos filhos não querem. E não querem por quê? Porque tem muita “civilidade” em cima, que cobre... eles não entendem.
OA - O que o senhor diria se um filho seu quisesse seu exemplo?
MV - Eu diria: meu filho, a estrada é sua. Uma estrada é sua, a outra é minha. Não posso levar você na minha estrada. Escolha, na verdade, a estrada certa que você quer.
Entrevista concedida a Bob Omena, do www.observatorioalagoano.com - edição n.° 35. (novembro/2006)
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